Como base temos algumas (muito poucas) questões de princípio elaboradas por nós no curso de decénios e que devem ser válidas em Itália e no estrangeiro, para o cientista ou o imigrado recém desembarcado, para a mulher radicalizada ou o jovem rebelde, para o idoso reformado; para seja quem for. Estes princípios agora são seis, sintéticos e facilmente traduzíveis para qualquer língua. Chamámo-nos “pequenas frases” (frasette em italiano), para desdramatizar e aplicar um pouco de ironia também para com nós. Cabem numa meia página, e são estes (nas parênteses rectas há a indicação das referências internacionais às quais podem ser reconduzidos):
a) O fim não justifica os médios, mas nos médios utilizados deve estar reflectida a essência do fim. [Prioridade da ética (Guevara) e da verdade científica além de cada consideração]
b) Apoio às lutas de todos os povos contra o imperialismo e/o pela autodeterminação deles, independentemente das direcções políticas que tenham. [Inícios da Terceira internacional]
c) Autonomia e independência total em relação aos projectos políticos do capitalismo. [Esquerda de Zimmerwald durante a Segunda internacional]
d) Unidade do mundo do trabalho mental e material, sem discriminações ideológicas (firmes ficando as «bases anti-capitalistas, anti-imperialistas e pelo socialismo»). [Primeira internacional]
e) Luta contra as burocracias politicas pela democracia directa e dos conselhos. [Internacional anti-autoritária de Saint-Imier e Quarta internacional]
f) Salvar a vida na Terra, salvar a Humanidade. [Verdadeira novidade histórica da Quinta internacional dos movimentos fim da nossa luta].
O princípio fundamental é o primeiro, que merece algumas palavras pelas suas consequências teóricas e científicas importantes. Digo-te agora porquê. A discussão científica e teórica fica parada desde os primeiros anos do século vinte. Quando se queixavam Bernstein, Luxemburg, Parvus, Trotsky, Kautsky e Lenin, tudo considerado era ainda um período de ouro, um Éden senão o Paraíso da nossa história: uma época na qual era importante compreender quem tivesse o não razão e, partindo desta base, orientar logo a acção. Bom, já nos meses logo depois da vitória da Revolução russa e nos primeiros congressos do Comintern (para não falar do que aconteceu em seguida com o estalinismo e depois com os seus epígonos) não teve mais valor nenhum o facto de ter razão ou não. O exemplo clássico foi obviamente Trotsky, o qual na polémica contra Estaline teve razão em cada assunto (desde a política interior à exterior) sem meias medidas ou ambiguidades: Estaline nunca teve, e ele também sem meias medidas. Um facto histórico inequívoco é que ter razão não mudou os destinos do mundo e se tornou um handicap no curso do tempo: ter razão torna-se uma culpa porque se uma pessoa tema a capacidade de examinar a realidade com lucidez e ainda por cima diz o que pensa em voz alta, então entra num gueto, passa à posição minoritária, se isola: veja-se a história da Quarta no interior do movimento comunista mundial; veja-se a da Fmr na Quarta (por exemplo a nossa definição desta corrente como «centrista sui generis», hoje mais que nunca demonstrada justa pelos acontecimentos históricos); lembrem-se a sorte de Guevara em relação ao castrismo, a história do diário Il Manifesto em relação ao Pci, as vicissitudes de Ferrando na Refundação Comunista; e poderia fazer centenas de exemplos para Portugal, Bolívia, Argentina, França, Venezuela etc.
Pondo de lado a experiência da Quarta, podemos passar ao problema do maoísmo. Muitos dos intelectuais italianos, o 99%, tornaram-se de repente maoístas no final do ‘68 e no ‘69. Os que não morreram ou não mudaram de actividade estão ainda em circulação, politicamente falando: ora bem, ninguém deles se desculpou ou declarou os seus erros; ninguém. Muitos resolvem o problema negando o passado maoísta ou especificando que foi um período breve … Outra pequena mentira, justificada pelo facto que as finalidades mudam de cada vez em função das exigências pessoais do mentiroso. Para não aparecer dogmático nas premissas, volto um bocado a clarificar uma coisa: se é verdade que Trotsky teve todas as razões históricas contra Estaline, porém perante a História ele não teve sempre e totalmente razão – demorou a compreender o horror e a periculosidade do fenómeno estalinista; teve com Lenine culpas gravíssimas no sentido de aplanar o caminho a Estaline através da liquidação dos comités de fábrica e dos sovietes, e de transformar o partido bolchevique que – já antes partido centrista – tornou-se um partido ditatorial contra-revolucionário; Trotsky tentou construir a Quarta em forma partidária, à imitação caricatural do que foram (já negativamente) o bolchevismo e o Comintern; errou na escolha dos colaboradores mais estreitos; não compreendeu a tempo a impossibilidade de combater o estalinismo no terreno dele; e ainda outros erros.
Podes voltar ao ponto central, o facto de ter razão, que tu me pareces pôr em termos de ética revolucionária.
Disse que desde um dado momento em diante (os primeiros anos do século vinte, seguramente após o Outubro) o facto de ter razão não teve mais valor, porque a questão decisiva era - e continua a ser uma e somente uma: quem controla o aparelho? Foi assim na luta dos estalinistas contra os velhos bolchevistas. Foi assim nas vicissitudes das cissões que caracterizaram os primeiros anos de reconstrução da Quarta internacional após a II Guerra Mundial. Foi assim na batalha da Terceira tendência internacional no interior da Quarta. E foi assim na luta das tendências todas que foram vistas na Refundação Comunista, etc., etc.
Repito e aclaro, contudo, que quando falo em termos de «ter razão» quero dizer também que o saber é relativo porque com o passar do tempo os elementos de avaliação variam, e mudam igualmente os indivíduos que se dedicavam a estes saberes. O máximo concedível ao ser humano é de ter razão em termos relativos. O problema é que, caída a importância de ter ou não razão – embora em termos relativos – acabou a discussão teórica: de nada serve, não determina mais a acção política. E se a teoria não determina mais a acção política revolucionaria, o papel decisivo passa aos interesses de casta (o de aparelho) ou seja à improvisação, amiúde feita por elementos instintivamente rebeldes mas sem formação teórica, e às vezes directamente expressão de formas de dificuldade psíquica, senão de verdadeira doença mental (no início podem parecer com características criadoras, mas ao longo do tempo são causas de desânimo, angústia, fuga da realidade).
Em concreto o primeiro dos nossos princípios fica fundado na ética e no amor da verdade histórica e científica (nos limites das nossas capacidades de compreensão). A nossa maneira de entender o associacionismo político (hoje Utopia Vermelha, amanhã não sabemos) é uma chamada grande em favor da autodisciplina, do sentido da maturidade e da integridade pessoal. Depois de 45 anos de presença na brecha (revolucionária), cheguei a uma conclusão: se uma pessoa não se auto-impõe por si os valores, não existe possibilidade nenhuma de imposição desde o exterior (etero-imposição). Não serve o centralismo democrático, não serve o aparelho partidário, não servem estatutos, programas, expulsões ou cissões.
Nem sequer o sistema jurídico da burguesia – que é o sistema jurídico mais avançadas na nossa época, construído durante séculos de elaborações e experiências – afiança a convivência no interior duma associação ou duma qualquer instituição pública na base de valores fundamentais; imaginemos se isso pode ser afiançado por estatutos improvisados, feitos ad hoc por representantes cínicos de castas constituídas ou em formação, instrumentos exclusivos para os que dirigem o aparelho numa determinada altura. Os estatutos dos partidos e dos partidinhos são um passo para trás em comparação com a civilização jurídica romana-mediterrânea-iluminista-democrática-burguesa na qual eu me reconheço, embora isso não seja mais bastante e eu queira o passo sucessivo.
Podemos examinar outro ponto entre os seis que consideras importantes?
Seguramente o segundo, pelo qual as lutas de auto-determinação dos povos devem ser apoiadas todas, sem considerar as suas direcções políticas. Trata-se duma questão de princîpio. Neste âmbito podem existir divergências de análise sobre a auto-determinação, sobreposições de lutas de libertação, situações aparentemente irresolúveis, ou tais pelo facto de qualquer imperialismo (ou no passado a Urss estalinista) apoiar uma determinada luta de libertação ou um sector desta… Problemas complicados presentes no passado e hoje, sempre resolúveis teoricamente, mas não sempre em termos de acção militar no terreno. Pode não ser fácil no nível teórico aplicar este nosso princípio (sobre tudo se uma pessoa vier duma formação ultra-nacionalista), mas deve igualmente ser mantido como válido. A este sentimento fazemos apelo. Um combatente nacionalista «utopista vermelho» deve sentir que se um povo - por razões próprias e ainda por cima historicamente discutíveis - tomou a decisão de se considerar um povo à parte, esta escolha deve ser respeitada em termos absolutos.
Pode parecer-te estranho, mas esta é a única herança do património teórico de Lenine por mim respeitada integralmente e válida ainda hoje totalmente. Se olharmos retrospectivamente, vemos que Lenine teve oscilações contínuas sobre questões fundamentais (desde a incompreensão da teoria da revolução permanente até à concepção do partido, desde o uso instrumental da democracia até à Nep, não falando do espaço concedido à burocracia em subida); mas sobre a questão da auto-determinação dos povos teve sempre razão, e ainda hoje.
Ademais faço-te notar que somente neste campo teórico Lenine não fez viragens nem ziguezagues. Nos casos dos assuntos já ditos – mas também com referência a outros, como terrorismo, sindicatos, sovietes, Estado, economia de transição, Internacional, relação com os mencheviques e outros partidos – fez viragens e contra-viragens. Pelo contrário no assunto da auto-determinação dos povos desde 1913 em diante nunca mudou a sua orientação e, perto da morte, a última batalha dele (contra Estaline) foi exactamente sobre a auto-determinação. Deixou-nos uma lição que vale ouro: o princípio de auto-determinação é um direito absoluto dos povos e não relativo.
O quinto, sobre a democracia directa e contra as castas ou burocracias políticas. Tem uma importância particular em relação à Itália, porque no nosso país a degeneração do sistema parlamentar chegou ao mais baixo nível histórico. Ou seja, dito diversamente, o país tem uma das crises do sistema parlamentar mais avançada do mundo. Isso quer dizer que na Itália nós de Utopia Vermelha não participamos minimamente nas eleições políticas, e fazemos campanha em favor da abstenção. No caso das eleições locais o discurso é mais complicado, mas também menos importante. Deve-se decidir em relação aos casos particulares (em relação a cada Câmara Municipal, cada província e cada região) mas o resultado não muda. Isso vale para Itália, França, Estados Unidos, Alemanha, Japão. O mesmo vale para os países dependentes o semi-dependentes. Há alguns dias, no encontro entre Douglas Bravo e UV, este histórico comandante guerrilheiro disse-nos que na sua opinião nem sequer na Venezuela se deve participar ulteriormente nas pantomimas eleitorais.
Votar ou não é uma escolha táctica. O problema real é a democracia directa e a luta mortal (repito: mortal) contra os aparelhos políticos, as castas, as burocracias que se interpõem no conflito de classe entre os sectores mais avançados da humanidade e as burguesias nacionais. Inútil dizer que também a recusa da “forma partido” feita pelos revolucionários faz parte desta visão radical da degeneração política.
O que é que foram historicamente a sócial-democracia e o estalinismo? Como se diferenciou o movimento trotskista em relação a estas duas correntes do movimento operário?
O movimento operário historicamente foi e está agora totalmente social-democrata. È a social-democracia que encarna a continuidade do movimento operário. Goste ou não, em 2011 não se poder mais negar esta realidade histórica. Somente os partidos social-democratas sobreviveram nalguns países importantes e só estes têm consenso de massa específico entre os trabalhadores. A função histórica dos sindicatos explica esta permanência e a relativa hegemonia no corso do tempo. Nas várias fases do processo de degeneração da social-democracia nasceram outras correntes, entre as quais no início foi fundamental a leninista-trotskista, apesar da brevidade da sua experiência histórica. E depois houve a corrente estalinista (deixaria de lado a experiência da ligação “classe operária/peronismo”, fascinante mas complicada, à qual dediquei um meu livro nos anos ’70).
O estalinismo cresceu no seio do movimento operário e tornou-se organizador dos sectores mais combativos. No passado podia falar de sectores “mais avançados”, mas agora presto atenção e não o digo. O movimento operário estalinista não foi o mais avançado pelo simples facto que cobriu e assumiu como seu o grande crime contra a humanidade representado pelo gulag, imperecível na memória histórica. Um importante sector social russo e internacional da classe que aceitou e fez sua (embora passivamente) a experiência do gulag, é um sector de classe retrógrado, condenado a não poder nunca exercer um papel social hegemónico, também considerado que a burguesia internacional, pelo contrário, teve a capacidade de sacudir dos ombros (co)responsabilidade para com o nazismo, ou seja uma experiência igualmente atroz apesar de ser mais breve e quantitativamente menos trágica do que o gulag estalinista com os seus mortos, mais de vinte milhões.
E permite-me voltar mais uma vez ao pacto de Hitler com Estaline, que eu considero uma vertente na história mundial. Não quero mais ouvir falar os que justificam aquela aliança estratégica, agressiva para com a Polónia, a Europa Oriental e os Balcãs (sem contar a renovação do pacto com o Japão). Quem o justifica é moralmente responsável dos crimes conjuntos do nazismo e do estalinismo no primeiro ano e meio de guerra, incluído o massacre do inerme povo russo quando começou a operação “Barbarossa” e os nazista puderam aproveitar a confiança cega e estúpida de Estaline no pacto. E não é só isso. Passando o tempo cheguei a pensar também que provavelmente, sem aquele pacto celerado, a guerra nem sequer começava, porque Hitler não tinha a possibilidade de agredir a ocidente sem ter as costas cobertas na fronteira oriental. Portanto devemos atribuir a Hitler e Estaline juntos também a responsabilidade do mais grande massacre conhecido pela humanidade.
Para compreender qual é a nossa posição referida às diferentes correntes do movimento operário, devemos dizer que na base do pensamento da Utopia Vermelha há o facto de não aceitar nem sequer a cissão de 1872-74 na Associação Internacional dos Trabalhadores, ou seja a Primeira Internacional; e o principal responsável da cissão foi Marx. Consideramos este acontecimento (dirigido contra Bakunine e os anarquistas) a primeira grande tragédia que abriu as portas às outras: todas. Aquela cissão fez passar o princípio pelo qual uma determinada linha política deve prevalecer, deve ser aceite por disciplina e quem não a aceita deve ir embora e criar uma internacional própria; como fizeram os anarquistas - mas sem muito êxito - diferentemente das outras correntes presentes na Associação Internacional dos Trabalahadores: owenistas, saintsimonistas, cooperativistas, proudhonianos, mazzinianos, garibaldinos, fourieristas, marxistas de vário género, independentistas anti-zaristas e anti-Asburgos de vário género, etc.
Para abreviar, aquela separação começou a cortar ao meio o movimento operário. Repito amiúde a frase seguinte: por causa da separação os marxistas levaram consigo a razão, e os anarquistas a ética. Estas duas maravilhosas faculdades do género humano dali em diante não se encontraram mais a nível de massa. Agora, ainda por cima, os marxistas ficam sem a razão e os anarquistas ficam sem a ética. Tudo resultou disperso em mil riachos, partidinhos, grupinhos, associações locais, ect. Sem aquela separação provavelmente a degeneração da social-democracia podia ser diferente, talvez ficava minoritária e não maioritária. Não podemos saber. A história não se faz através do “se…”, mas aquela separação, sem dúvida, favoreceu o processo de degeneração estadista da social-democracia. Utopia Vermelha não é tão louca de pensar que a humanidade em luta possa fazer marcha-atrás (embora goste disso como sonho), mas pensa que um dos objectivos seja ultrapassar aquela separação, na teoria e também no seu pequeno terreno prático, através do exemplo e da sua simples existência.
Hoje, após a caída do Muro de Berlim e, paralelamente, o deslize da social-democracia rumo ao social-liberismo, ainda têm sentido categorias interpretativas como social-“democracia” e “estalinismo”, ou não?
Nem o trotskismo no ponto em que estamos.
Não, o trotskismo nunca foi uma categoria interpretativa no sentido histórico, á parte na fase mais cruenta da batalha contra Estaline. Acredito que nem o próprio Trotsky pensou nisso quando fundou a Quarta em 1938 e quando deveu constatar que já não existia mais em 1939. Por conseguinte, com exclusão da batalha naquele período específico, o trotskismo (esperando que a palavra seja usada num significado unívoco) historicamente não teve nenhuma função prática significativa. No campo teórico, pelo contrário, teve méritos grandes. E seja como for neste terreno nenhuma outra corrente pode competir. Os livros, as revistas, os intelectuais – Naville, Mandel, C.L.R. James, Victor Serge e dezenas doutras mentes prestigiosas – demonstram-no. Para não falar dos muitos que passaram através do trotskismo e em seguida se afastaram.
Quando nego ao trotskismo um papel histórico concreto na luta contra o estalinismo, devo já reconhecer que 1) pelo menos tentou esta luta durante decénios e pagando preços humanos inenarráveis, e 2) nenhuma outra corrente conseguiu fazer melhor ou mais. Ao contrário quem pôde conformou-se antes ou depois. Pensemos no Partido Socialista italiano…
Como acabaste de dizer, categorias interpretativas como estalinismo, social-democracia e trotskismo não são mais validas. E as de “reformismo” e “revolução”?
Nem sequer estas. Porque o reformismo não existe, e como realidade histórica nunca existiu. Pelo contrario, a aspiração à revolução existe. Mas trata-se precisamente duma aspiração, dum facto mental e espiritual; um facto teórico mesmo se para algumas pessoas que conheço, na época da Internet tornou-se um facto essencialmente virtual Acredito que ninguém possa considerar reformismo a presencia de determinados partidos no jogo parlamentar e as propostas que fazem com a finalidade de ganhar as eleições. Reformismo não é isso. Como disse precedentemente, também neste nível não vamos além do confronto teórico do início do século vinte, quando o reformismo apareceu assumir uma natureza estadista pela acção da social-democracia alemã. Depois, como sabemos, houve o voto em favor dos créditos de guerra.
No início da minha vida política (segunda metade dos anos ’60) estava em uso o termo «reformista» como epíteto (ofensivo) dado aos social-democratas, que reformistas absolutamente não eram. A burguesia fazia as reformas. As grandes nacionalizações franceses foram feitas por De Gaulle, Fanfani fez a nacionalização da energia eléctrica em Itália. E os governos hegemonizados pela democracia cristã instituíram as regiões, aprovaram o Estatuto dos trabalhadores, aboliram as “jaulas salariais” e o novo direito de família. Se houver um reformismo, isso foi posto em prática pela burguesia nos países onde teve a possibilidade de dispor do surplus social (emblemática, mas limitada no tempo, a experiência ultra-reformista do primeiro governo Perón).
Ser «reformista» é uma aspiração latente na ideologia da burguesia, correspondente ao significado do termo: ou seja reformar o sistema. Bem sabemos desde o início do século vinte – e o marxismo (Rosa Luxemburg em primeiro lugar) explicou-o em abundância – que uma reforma estrutural do sistema capitalista não é mais possível. Mas a aspiração fica, como facto ideológico e não necessariamente de má-fé: o movimento no-global ou o mundo teórico da decrescimento são cheios destes desejos da reforma do sistema capitalista; reforma que naturalmente não têm possibilidade nenhuma de realizar até quando o controlo privado dos principais médios de produção exclua das alavancas de comando o mundo do trabalho material e mental (e no seio deste último, em primeiro lugar, o mundo da ciência).
Em geral a social-democracia não foi reformista, mesmo se algumas vezes mexeu a lisonja vã das reformas por entrar melhor no aparelho do Estado e, partindo desta posição, fazer pagar os preços da acumulação ou das crises capitalistas aos trabalhadores. Nós da extrema-esquerda antiga, erramos naquela altura denunciando como «reformistas» os partidos comunistas filo-soviéticos (Pci, Pcf, Pce – também antes da fábula do euro-comunismo). Onde é que foi visto nunca um reformismo estalinista ou dos Partidos Comunistas? Alguém viu isso no Chile de Allende? Ou no governo de D’Alema? Ou na Union de la Gauche de Mitterand?
Hoje, quando se usa a expressão «reformista», por exemplo no caso do Partido da Refundação Comunista, descamba-se no ridículo, porque esta casta pequena, este aparelho finalizado às eleições, cada vez que entrou no governo (os Comunistas Italianos duas vezes, e o partido de Bertinotti só uma) isso foi para fazer as mesmas coisas feitas pelos ex-comunistas, ex-socialistas, e também fascistas, direita e Berlusconi. Nunca esquecemos o voto favorável à missão no Afeghanestão (Julho de 2006), pela unanimidade do Parlamento italiano, incluídos a direita de Rauti, os dois senadores da Quarta-Esquerda Crítica (Turigliatto e Malabarba), os Comunistas Italianos, os de Refundação, os verde, os gay, mulheres e minorias étnicas e linguísticas.
Passemos ao presente. A crise do sistema económico e social do capitalismo de hoje propõe novamente conflitos. Entre estes o conflito capital/trabalho ainda é a contradição principal do sistema capitalista? Se sim, qual é a sua ligação com os outros conflitos como, por exemplo, a questão de género, a ambiental ou dos direitos civis?
Para mim não é fácil dar-te a resposta, porque há muito tempo me libertei da linguagem hegeliana e do que de hegeliano fica em Marx; portanto estabelecer se seja ou não principal a contradição capital/trabalho faz parte duma linguagem que me custa compreender. Não sei mais o que quer dizer, porque não aceito mais este tipo de terminologia formal e abstracta, boa só para jogos linguísticos de cada género, ou para basear neles a construção das carreiras académicas dos “marxologistas” já lembrados.
Sem dúvida o capital (ou seja a classe burguesa imperialista, ainda dividida segundo os Estados de pertença) domina mundialmente e domina tudo: o mundo material, o espiritual e o virtual. Domina os conflitos de género, as guerras, a economia, a exploração, as ideologias e sobretudo o crescimento exponencial dos mecanismos da sociedade do espectáculo, que cada coisa penetram e condicionam. Pelo menos não podemos duvidar duma coisa: o inimigo continua a ser o capital, e não se trata dum facto virtual, mas das pessoas físicas que constituem a burguesia, embora dificilmente individuáveis detrás das várias formas de empresas (privadas, mistas, etc.) ou sociedades de capital. Esta classe social tornou-se o inimigo principal, e não mais só dos trabalhadores, mas de massas sempre crescentes de cidadãos da terra, independentemente da posição produtiva: membros da espécie que trabalham ou não, pobres ou ricos, machos ou fêmeas, jovens ou velhos, religiosos ou ateus – mas que, seja como for, começam a experimentar isso na pele, e portanto a ver que a sobrevivência do capitalismo põe em perigo a sobrevivência da Terra.
A sexta “pequena frase” de UV é, não por caso, «salvar a Terra, salvar a humanidade». Pessoalmente, acredito muito nisso, e represento-me fisicamente o conceito de espécie (totalmente estranho, porque incompatível, à linguagem hegeliano feito por contradições do qual falávamos antes), espero que a espécie seja capaz, por instinto de sobrevivência, de se libertar do capitalismo. Mas francamente não espero mais que sejam somente os trabalhadores a eliminar o capitalismo: isso porque tiveram a apropriada ocasião histórica, dilapidaram-na nos primeiros anos do século vinte e permitiram que em nome deles a esperança grande do comunismo se transformasse no sistema do pior crime contra a humanidade nunca visto antes. Como vês, voltamos sempre ao estalinismo; e infelizmente deveremos voltas outras vezes ao que foi até quando a humanidade não o rejeitará, assim assumindo uma tarefa histórica que o movimento operário não foi capaz de concretizar.
Tu dizes que o sujeito da transformação social não é mais a classe operária, mas a humanidade inteira?
A humanidade quase inteira nas suas partes conscientes, embora eu prefira utilizar a palavra «espécie» derivado das ciências biológicas em vez dos termos derivados da filosofia ou da literatura («humanidade»). Tendo tempo, tento explicar a diferença.
No caso da humanidade, ou espécie que seja, torna-se interessante compreender a dinâmica, a formação e a difusão dos processos de aquisição da consciência e do conhecimento. O aumento do processo de crescimento, de facto, procede em conformidade com os princípios clássicos do desenvolvimento desigual e combinado (outra grande contribuição teórica de Trotsky): às vezes trata-se do lugar geográfico (como Cuba nos primeiros anos ’60), às vezes dum movimento específico (por exemplo as colectividades da Catalunha nos anos 1936-37), às vezes no interior dum sexo numa fase determinada (a retoma do feminismo nos anos ’60 e os gays em alguns países), às vezes ainda nalgumas comunidades culturais (penso nas experiências situacionistas, mas também – porquê não – a actual Utopia Vermelha e tantas outras experiências análogas que seguramente andam a crescer sem nós sabermos). A experiência demonstrou-me em abundância que estes processos não vivem nunca uma evolução positiva quando se limitarem no interior da experiência do intelectual isolado e preocupado somente de si próprio, dos seus livros, da sua carreira, do seu narcisismo. Não tenho em mente nem sequer um exemplo em sentido contrário, embora tenha conhecido no mundo muitos intelectuais capazes, e às vezes verdadeiramente capazes, mas não interessados na construção de processos colectivos de aquisição de consciência e conhecimento.
Desculpa-me pela interrupção. A consciência da qual tu falas foi historicamente a consciência de classe; hoje, considerada na tua maneira, é una consciência diferente?
È uma consciência que antes de tudo deve ter um sinal negativo, ou seja deve ser anti-capitalista. Quando, por exemplo, nos empenhamos no movimento feminista, afirmamos que deveria fundir a crítica ao machismo e ao autoritarismo patriarcal com a crítica ao capitalismo, apesar de não se produzir ainda na realidade de nenhum país. O movimento feminista foi anti-capitalista nalgumas suas componentes e só nalguns países (Usa, França, Itália) e na sua fase inicial (fim dos anos ’60 e início dos ’70), mas no sentido geral nunca o foi, mesmo se esperamos que um dia chegará a ser anti-capitalista. Portanto, está claro que o inimigo global é o capitale. Deve-se estar conscientes disso, nas mil e uma maneiras oferecidas pela biodiversidade dos seres humanos.
Contudo, a este inimigo tão claramente individuado não se contrapõe mais um sujeito social único, portador no seu ADN dos elementos para a transformação, mas camadas e sectores diferentes e fragmentados na medida em que conseguem tomar consciência (a palavra «movimentos» estaria bem, mas não gosto dela para Itália onde – na cabeça de muitos – quer dizer grandes desfiles-espectáculos, com greves puramente demonstrativos ou fogos momentâneos de insubordinação a nível local, causados na maioria dos casos pelos problemas da agua, do lixo, das incineradoras, e semelhantes). Camadas e sectores que em linha geral não passam à luta (no sentido físico e visível), mas de qualquer forma conseguem evidenciar a insolubilidade de um ou vários problemas sociais e/ou culturais.
Podemos ter por exemplo uma viragem radical de físicos nucleares em alguns países que denunciam na imprensa ou pela rede web a periculosidade de novas centrais nucleares. Não é indispensável fazer greves ou ir à rua: é um movimento de opinião que pode incidir profundamente em sentido anti-capitalista. O mesmo vale para uma corrente de magistrados que contestem o carácter antidemocrático e de classe de classe da justiça; urbanistas que apresentem “livros brancos” sobre a especulação na construção civil; editores que deixem de correr atrás das modas ditadas pela televisão; telespectadores que comecem a desligar as malditas caixas catódicas… Enfim, uma série de «agitações» sociais inevitavelmente destinados ao choque com o sistema do capital, se quiserem ser coerentes com as premissas.
Para que se desenvolvem, nos inícios é fundamental a fase de propaganda e divulgação (nisso nós os editores temos responsabilidades e potencialidades gigantescas). Mas, logo que se movem os primeiros passos, torna-se essencial o problema da democracia directa. Até quando falte a solução deste problema, os chamados «chefes naturais» destes movimentos inevitavelmente acabarão por conquistar um lugar nas listas eleitorais das próximas eleições locais ou no quadro do pessoal de qualquer sindicato ou partido, ou num palco televisivo prontamente predisposto pela sociedade do espectáculo. E após dois anos ninguém se lembrará do «movimento» (veja-se o caso do aeroporto de Vicenza o da Tav no Vale de Susa).
Me fazes uma leitura da crise económica e social actual? Quais as causas?
No nível teórico reconheço-me grosso modo no que já dizia Rosa Luxemburgo, ou seja que o capital há muito tempo não encontra mais novos campos de expansão (valorização) nem no interior nem no exterior. Por isso penso que como abstracção máxima se possa falar ainda de crise de superprodução de capitais que se sobrepõe às vezes à superprodução de mercadorias (mas existindo para estas últimas – pelo menos por vezes – a possibilidade de novas colocações). Seja como for, são duas fontes de crises estruturalmente distintas e que não sempre coincidem. De qualquer maneira não estou à vontade falando destes problemas macroeconómicos num instante, e francamente prefiro remeter tudo aos dois volumes escritos por Michele Nobile e já citados (um de 1993, mais actual que nunca, e um de 2006, ambos na colecção “Utopia Vermelha”).
Em relação à crise económica por tradição ponho-me entre os anti-catastrofistas (e já que prego prudência neste campo há quase quarenta anos, reforço-me nos meus convencimentos). Se tu vais ler alguns documentos da batalha feita como Terceira tendência internacional, pode achar muita polémica contra o catastrofismo económico em voga na Quarta dos anos ‘70 e naquela altura directamente baseado no pensamento duma grande mente como Ernest Mandel. Agora quando leio os necrológios da morte do sistema a breve prazo escritos por pequenos grupos ou pensadores individuais (chamo-os «sozinhos ideológicos») apetece-me só rir e não sinto a necessidade de abrir a polémica. Cada vez o passar do tempo revela quantas são as cartas disponíveis para a burguesia internacional com o fim de resolver os próprios problemas económicos até quando fiquem somente económicos. Mas não me acontece nunca de ler uma linha de autocrítica escrita pelas novas gerações catastrofistas. Nada, eles já andam a pensar no próximo necrológio, e ainda por cima ficam convencidos de que no ponto em que estamos a crise resolutiva terá de chegar. Talvez um dia acabarão por ter razão, mas nesta altura só fazem confusão entre os sonhos e a realidade (eu não sonho para nada a queda do sistema pela sua incapacidade de superar as crises económicas – imagino a passagem dos poderes numa maneira mais decorosa, mais colectiva e construtiva).
Vejo uma sucessão de crises económicas (e retomas) em tempos cada vez mais breves (come já explicava a teoria das ondas longas de Kondratiev, outro pobrezinho assassinado pelo estalinismo e estimado por Trotsky), mas não vejo uma conseguinte crise da burguesia internacional - em termos nem políticos, nem culturais - mais grave do que nas décadas passadas: possivelmente considero-a menos grave e penso que desde o final da II Guerra Mundial seja este o seu momento de esplendor máximo. Espero naturalmente – como aconteceu aos grandes Impérios (o romano por ex.) – que o ápice do poder e das possibilidades de manobrar abra um período de nova e efectiva decadência e, por isso, de vulnerabilidade grande do sistema.
A história do capital é uma história de crises após crises. O capital cresceu nos séculos atravessando e resolvendo as suas próprias crises mais ou menos por expedientes não económicos, ou seja políticos e militares. Do capital não se deve subestimar a capacidade de regeneração em cada latitude do globo e nos mais impensáveis regimes políticos. O capital tem a possibilidade de descarregar os efeitos das crises: ou graças aos métodos tradicionais – fazendo pagar o custo aos trabalhadores, fazendo guerras (que em primeiro lugar causam destruições de mercadorias e de forças produtivas, mas permitem encaminhar novamente o mecanismo económico) – ou inventando soluções novas, por exemplo em campo técnico-informático ou através o ulterior e anormal crescimento da sociedade do espectáculo. Não me peças como é que a China (país capitalista debaixo duma ditadura burocrática do partido único) se coloca nisso, porque de outra maneira não chegaremos nunca ao fim.
Em suma, o capital tem todos os possíveis e imagináveis instrumentos de manobra, porque não encontra contraposto um adversário acreditável. O movimento operário não parece destinado a se retomar (e já disse que não se retomará sem a preliminar rejeição daquela monstruosidade que foi, também para ele, o estalinismo); sem considerar os problemas novos surgidos durante o caminho, como a difusão do integralismo islâmico, o crescimento exponencial dos nacionalismos, a difusão carismática da sociedade do espectáculo nos países dependentes, etc.
No período que abrange o século dezanove e o sucessivo, o adversário da burguesia apareceu perfeitamente temível, e era o movimento operário dalguns “países chave” europeus (mas também nos Estados Unidos da Iww, dos Wobblies). Agora a só limitação à jactância da burguesia e à sua possibilidade de manobra para com os destinos do mundo aparece, como já dito, a salvaguarda da humanidade e da espécie.
O capital é historicamente incapaz de fazer frente aos problemas da salvação da Terra, em primeiro lugar porque não tem experiência como classe. Em segundo lugar, globalmente não pode fazer frente às exigências ambientais; isso porque fica no capitalismo a contradição: a procura do lucro custe o que custar è incompatível com a socialização dos principais médios de produção à escala mundial. Hoje em dia – se querermos próprio racionar em termos de contradição principal, em homenagem à tradição hegeliana do marxismo, esta fica entre a salvaguarda da espécie e o capital (ou seja a gestão privada dos principais médios de produção). E como tal é, enquanto tal, è insanável. Sempre que a espécie não decida colaborar para resolver a contradição, tomada por um repentino raptus auto-destrutivo. Neste caso demonstraria de não ser uma espécie e que os cientistas antes e depois de Darwin erraram.
Na construção doutro «mundo possível», usando uma fraseologia dos movimentos contra a globalização dos anos passados, ou, seja como for, duma alternativa social em geral, são ainda válidas as coordenadas «revolução» e «internacionalismo»? Se sim, que tipo de revolução e de internacionalismo?
Sim, mais que nunca. Cada vez mais em forma crescente. Para a segunda parte da pergunta não tenho mais espaço, e por isso remeto aos conteúdos das respostas precedentes.
Hoje, como pode ser proposto de novo um conceito revolucionário?
Em negativo, como sempre, é mais fácil: abolição do capital, ou seja da propriedade privada dos principais médios de produção à escala mundial. Deve ser este e ponto de chegada dum processo revolucionário. Pelo contrário, descrever a revolução em positivo quer dizer estar em condições de construir um sistema racional de gestão da economia e das relações sociais à escala mundial. Aqui a novidade. Não existe mais a perspectiva de tomar o poder só numa país. É impensável, é retrógrado e entre outras coisas irrealizável.
Portanto é uma das lições históricas aprendida da experiência da social-democracia e do estalinismo.
Sim. Quem ainda não a aprendeu não fez as contas com a história. Para voltar ao conceito de revolução, não tenho claro como será a revolução, mas forçosamente deverá medir-se com o aspecto em negativo e o em positivo já ditos. Porém, digo-te ainda uma coisa clara e nítida sobre o processo revolucionário: basta de aparelhos que, no passado, se substituíram às classes sociais e hoje gostariam de se substituir à espécie. Não é possível que os aparelhos resultem mais hábeis socialmente do que a classe burguesa que, pelo contrário, demonstrou uma bravura histórica excepcional no conseguimento dos próprios interesses em todos os campos possíveis e imagináveis. A tentativa, cheia de veleidades, de bater a burguesia contrapondo-lhe um aparelho partidário, que aparecia já doido quando foi proposto nos primeiros anos do século vinte, hoje é somente risível. Tudo o que é estranho ao corpo social, se sobrepõe ou se interpõe, é negativo e seja como for os próprios cidadãos vivem-no como algo estranho. Queres uma apresentação extrema do conceito? Bem, os aparelhos são todos negativos, e fundamentalmente negativa é a função histórica deles: a burguesia compreendeu-o há muito tempo e por isso serve-se de aparelhos e partidos, mas sem se identificar com estes. Quando assim acontece (exemplo: o último fascismo italiano ou o nazismo alemão) livra-se deles por um encolhimento de ombros. Os partidos e os seus sucedâneos (como os centros sociais, as associações de solidariedade para com países estrangeiros, juntas elegidas na base de listas cívicas) podem ter uma função temporariamente positiva vistos em relação aos objectivos particulares (o «item» particular, diziam há tempos os camaradas do Swp estado-unidense, antes de se transformar numa central de propaganda do castrismo nos Usa) ou em relação à solução dum problema circunscrito, ou seja imediato: se por exemplo for preciso ajudar imigrados ao desembarque, os jovens da Federação da Esquerda (poucos na verdade) provavelmente actuarão melhor do que a Cruz Vermelha ou os Carabineiros. O mesmo se houver necessidade de tirar o lixo das ruas ou salvar os jovens da droga. Francamente não vejo nada mais. Pelo contrário poderia fazer a lista das centenas de danos feitos por estes partidos e os seus aparelhos. Ou melhor, fizemos a lista em dois livros da colecção “Utopia Vermelha”, os míticos I forchettoni rossi (Os Garfos Grandes Vermelhos) e Le false sinistre (As falsas esquerdas). Não quero dizer que sou contra cada tipo de organização. Antes de tudo sou favorável ao sindicalismo, embora em termos muitos diferentes do que agora vemos. No campo político é bastante concordar sobre o princípio libertário (nade de obrigações programáticas), anti-hierárquico (nada de chefes institucionais, congressos e estatutos – mesmo se houver sempre graus de maior ou menor empenho e influência) e sobre o serviço voluntário (nada de funcionários assalariados, nenhuma carreira nem proveito económico). UV tem a presunção enorme de ser o primeiro agrupamento revolucionário que teve êxito no pôr em prática três coisas aparentemente irrealizáveis: 1) actuar colectivamente (para agora como comunidade política internacional) sem aparelho partidário; 2) fazer conviver construtivamente ideologias diversas, traçando uma linha de demarcação revolucionária só na base de alguns princípios; 3) pôr a ética no primeiro lugar.
Domanda sucessiva. No conceito de revolução e na conseguinte transformação da sociedade, qual é a maneira de pôr a questão do poder? Nos últimos anos, no seio dos movimentos sociais, ouvimos muitíssimas vezes o slôgã «mudar o mundo sem tomar o poder». A questão fica ainda central?
Aquele slôgã é suspeito e susceptível de várias interpretações. Cada qual dá-lhe o significado que quiser (agora anda à moda o conceito de «viver bem»…). Seguramente corresponde à muito forte exigência pacifista, mas isso não impede que seja ambíguo. Eu sei que o poder real existe e acredito que deve ser destruído. Sem dúvidas. Não devemos «tomar o poder»: devemos destruí-lo e pôr em substituição a organização dos que participam colectivamente neste processo. Sobre qual seja o tipo de organização felizmente não tenho as ideias claras: é ai de ter presumidas ideias claras – seria como entrar num campo de utopia descritiva, amiúde tola e sempre ingénua.
Com referência às fábricas sem dúvida sou favorável à autogestão operária, mas isso não quer dizer que a mesma escolha seja válida para com os bairros. Portanto prefiro uma descentralização de muitas comunidades (micro ou macro, conforme o objecto que se deve gerir) que se coordenam em sentido piramidal, realizando assim uma certa forma de centralização. Repito, não sei o que substituirá o aparelho estatal destruído – seguramente não outro Estado e também não os sovietes, visto como se fizeram exautorar no prazo de poucos meses a última vez que nasceram e tomaram o poder.
Acredito ainda na necessidade da violência, mesmo se preferiria muito que tudo aconteceçe sem violência. Infelizmente o processo de reconquista da propriedade social dos principais meios de produção não será pacífico. Será tal somente, como dizia Guevara, para os últimos. Não sou pacifista; foi tal na época do liceu (na altura das primeiras lutas pela objecção de consciência) e deixei esta orientação desde o ano 1966 quando, perante a embaixada Usa, foi massacrado pelas pancadas dos polícias porque estava sentado na rua, em primeira fila, de costas viradas. Havia o Vietnam e o ano depois morria Che Guevara. Como era possível prosseguir na linha do pacifismo? Gostaria de poder voltar a ser tal (neste caso o meu modelo seria Gino Strada), mas a não violência será somente um slôgã até quando houver guerras, parlamentares que votam em favor e soldados dispostos a combater também porque ninguém lhes diz de desertar, mas sobre tudo porque como mercenários ganham rios de dinheiro.
O que é que me dizes sobre o assunto do internacionalismo?
Desde o ponto de vista individual a minha vida política foi sempre, cem por cento, a dum internacionalista. Em 1966 aderi à Quarta Internacional (tinha vinte anos), mas frequentava-a já desde alguns anos porque a minha irmã Rossana Massari tinha aderido em 1961.
Expulsos da Quarta em 1975 fizemos nascer uma organização internacional – a Fracção Marxista Revolucionária – que tinha a secção principal na Alemanha e pequenas secções em Itália, Áustria, França, ligações em Portugal e Inglaterra, e pouco mais. Em 1980, para não fazer ainda outro pequeno partido internacional, decidimos dissolver a organização.
Em 1983 numa reunião em Florença, com os poucos camaradas que ficaram expliquei porque é que acabara historicamente a época da Quarta Internacional e se abria a da Quinta. Uma relação muito longa da qual conservei a gravação, depois transcrita e publicada há pouco em ocasião do nosso debate como UV sobre a proposta feita por Chávez de dar vida à Quinta Internacional no Abril de 2010. A decisão foi de participar no projecto e enviamos-lhe uma carta-documento explicando que na nossa opinião uma Quinta Internacional se devia construir na base dos nossos 6 princípios ou algo análogo. Chávez deixou cair a coisa, sem palavra nenhuma (provavelmente jogou muito a oposição nacionalista do governo cubano, que não tinha nenhuma intenção de aderir). Entretanto nós temos prosseguido o nosso caminho.
Na abertura do nosso blog há o emblema da necessidade de construir a Quinta Internacional – uma internacional composta fundamentalmente de movimentos, associações etc.; mas fundada nos princípios em precedência já ditos. Por enquanto damos o exemplo da capacidade de funcionamento do modelo libertário. No nosso programa há um livro sobre este assunto que será escrito “a muitas vozes”.
Acabei as perguntas. Dos assuntos tratados, queres retomar alguma coisa por aprofundações e explicações?
Falta falar da sociedade do espectáculo, que para nós de UV é fundamental. Refiro-me quer ao livro escrito por Debord em 1967 (fica entre os que vendo mais como editor, e cuja edição foi preparada pelo nosso perito em situacionismo, Pasquale Stanziale), quer à actualização daquela visão crítica da sociedade na qual vivemos. Explicá-lo aqui precisaria de tempo, mas na UV maioritariamente pensamos que a sociedade do espectáculo seja hoje a arma principal de domínio nas mãos do capital e que permita, come teoria crítica do existente, de explicar perfeitamente a política dos partidos e pequenos partidos e dos seus pequenos chefes. O exemplo do “bertinottismo”2 (por mim muito analisado no livro sobre os Garfos Grandes Vermelhos), desde o mesmo ponto de vista é quase didáctico. A sociedade do espectáculo portanto entrou na bagagem teórica do utopista vermelho e deve necessariamente ser desenvolvida no contexto da Quinta Internacional. Ademais há uma disciplina nova que constitui um campo ulterior de trabalho para nós de UV, tão que pedimos ajuda desesperadamente aos profissionais do sector psiquiátrico. Refiro-me à psicopatologia política. Temos publicado fichas sobra a paranóia, o narcisismo, o culto do chefe carismático etc., e temos começado a aplicar estas categorias (esta diagnose) ao estudo do comportamento de grupos ideológicos, dos pequenos partidos, dos seus pequenos chefes, dos seus rituais e hierarquias tranquilizadoras. Enfim, depois de ter polemizado por decénios contra um mundo de pequenos grupos, que se revelou substancialmente surdo perante as críticas e não disponível ao debate, a nossa decisão foi de não analisar mais estes grupinhos na base da linha política por estes propostas (e nas quais na maioria dos casos nem acreditam), mas pelo contrário come exemplos de psicopatologia política, ou seja de disfunções da personalidade, histerismos, paranóias.
Ninguém de nós pode excluir a existência destas patologias também no interior da Utopia Vermelha. Também entre nós acontece que se manifestem estes sintomas, e quando isso acontece põe a dura prova os nossos critérios libertários, éticos e comunitários. Aliás, seria ilusório pensar que UV seja uma ilha de bem-estar psíquico e de higiene mental, que evitou as leis do capitalismo, da frustração social e da sociedade do espectáculo. Este tipo de leitura do comportamento foi para mim uma viragem muito importante, embora há vários anos Antonella Marazzi me tivesse empurrado nesta direcção. Era o tempo no qual eu sabia tudo sobre as linhas políticas e as histórias dos grupos, em Itália e no estrangeiro. Desde um pouco de anos, pelo contrário, comecei a ver claramente que não se trata de fenómenos políticos, mas de distúrbios da personalidade. Para estes grupos (nascidos muitas vezes não se sabe como e sobre tudo não se sabe por qual razão) a presumida «linha política» ou a «teoria leninista do partido» ou o «Programa» são somente coberturas psicológicas para estados de insegurança já analisados no seu tempo por W. Reich. O pequeno aparelho, a cumplicidade de grupo, a disciplina leninista ou trotskista, o rito do congresso, são simples expedientes psíquicos para aliviar o mal-estar nesta sociedade alienante. Para os mais manhosos, porém, tornam-se ocasiões de carreira. E aqui também os exemplos não faltam. Resta o facto que os jovens que vão militar nos pequenos grupos são pessoas inseguras, com a necessidade de ser encaixilhadas dentro dum aparelho. Provavelmente têm problemas em relação à figura paterna ou materna, e andam à procura de substitutos, de figuras de autoridade que não tiveram no seio da família. Ali, no pequeno partido, acham-nas (provisoriamente, mas não para sempre).
Em conclusão, me das uma definição de comunismo?
O comunismo é o movimento, em primeiro lugar ético e necessariamente colectivo, dos sectores mais conscientes da humanidade que lutam por tirar a propriedade privada dos meios de produção ao capitalismo, tendo a finalidade de salvaguardar a sobrevivência da espécie.
Pois bem, trata-se duma definição, e por isso deve conter só o essencial. Mas parece-me que não perdi nada importante...
Bolsena, 10 de Abril de 2011
Tradução: Pier Francesco Zarcone
1 Bordiga foi fundador e primeiro secretário do Partido Comunista Italiano [N. d. T.].
2 Vem do apelido de Fausto Bertinotti, antigo secretário do Partido da Refundação Comunista [N. d. T.].