IN DUE LINGUE (Italiano, Portoghese)
EM DUAS LÍNGUAS (Italiano, Português)
EM DUAS LÍNGUAS (Italiano, Português)
Não é somente pela sua hegemonia econômica que a sociedade portadora do espetáculo domina as regiões subdesenvolvidas. Domina-as enquanto sociedade do espetáculo ao nível do funcionamento global do sistema, numa divisão mundial das tarefas espetaculares.
(Guy Debord, A sociedade do espetáculo, 1967)
(Guy Debord, A sociedade do espetáculo, 1967)
Terça-feira, 11 de setembro de 2001, 8h45: as Torres Gêmeas em Manhattan explodem e caem no chão após o impacto de duas aeronaves guiadas por pilotos suicidas da rede al-Qaeda.
O mundo não vai esquecer facilmente essa data, porque, desde então, inúmeras fotos que retratam as torres envoltas pelo fogo transformaram-se em "imagens-símbolo" da nossa época. Como tal, elas são utilizadas de forma contínua - e serão cada vez mais no futuro - em escala industrial e de massa. Continuar a ser submetido a uma série infindável de reproduções, em variações gráficas de todo o tipo que não podemos imaginar, mesmo remotamente. Tais manipulações gráficas dependem das inovações no campo da tecnologia e informática pós era da computação, com suas repercussões ao navegar pela Internet.
É um fenômeno que há muito se verifica com o progresso tão reconfortante dos trabalhadores no âmbito do Quarto Estado de Pellizza da Volpedo (1901), com a bomba atômica de Hiroshima, com a maliciosa foto de Marilyn com a saia do vestido voando ou com as inesquecíveis fotos de Guevara tiradas por Korda. Estamos falando de "imagens-símbolo de nossa época" e não apenas de imagens famosas: ou seja, fotos que têm um tremendo poder evocador; que se comunicam diretamente com a imaginação dos indivíduos e da coletividade; que em uma fração de segundos sintetizam os parâmetros culturais e coordenam o espaço-tempo, por mais remotas e irreconhecíveis (na verdade supérfluas); que aludimos "antes" e "depois" totalmente separados da imagem ocasional do objeto (que permanece arbitrária e, portanto, disponível para qualquer tipo de manipulação).
Na verdade, é a sequência - ou seja, a possibilidade de reprodução técnica de variações gráficas infinitas (na presença de condições de compreensão universal e generalizada) - que em última análise fazem dessas imagens símbolo da nossa época.
E que símbolo é a queda das Torres Gêmeas!
Como se estivesse à procura de uma marca que retratasse os olhos das gerações futuras para a transição do "século breve", o último do segundo milênio - o século XX dos grandes pecados históricos e sociais (nazifascismo, stalinismo, colonialismo, guerras mundiais) - as ansiedades coletivas para as dúvidas do terceiro milênio, não poderão ser respondidas. A mais bela evocação cinematográfica de Armageddon poderá parecer apenas algo banal para aqueles que filmaram tais imagens.
Depois da tragédia, os jornais competiram para determinar quais recordes foram batidos: o maior número de vítimas em um único dia (guerra e desastres naturais excluídos); o primeiro ataque contra os EUA, no seu próprio território, desde 1812; o evento mais sangrento e intensamente coberto pela mídia; o maior dano econômico em uma única ação (perda de 40 bilhões de dólares aproximadamente); a extrema representatividade arquitetônica-urbanística do alvo; mas também o ataque mais inter-étnico, com as vítimas originárias de 87 diferentes países (e o mais interclassista em relação ao número de vítimas - estamos nos incluindo nesta relação macabra).
Mas, em seguida, obedecendo a lógica frenética das notícias, até mesmo o atentado parou de ser noticiado pela mídia, perdendo o interesse em poucas semanas. A guerra no Afeganistão também passou por isso…
Por que estamos nos lembrando de um episódio tão conhecido e trágico da "história moderna"?
Em primeiro lugar, porque o episódio não é mais tão "moderno". O tempo voa, as impressões espontâneas caem no esquecimento, a dor dos sobreviventes se atenua, as recordações se apagam da memória e os eventos tornam-se temas de estudos, historiografia e teses universitárias. Tudo isso é uma forte evidência da nossa capacidade de absorver a notícia, por mais trágica, dolorosa e desumana. Agora nos referimos às 33 facadas que mataram Júlio César e que ainda nos lembramos…
Em segundo lugar, porque é a data de nascimento da espetacularização visual do terrorismo. O mundo acompanhou a queda da segunda torre praticamente ao vivo, as cenas de terror, os corpos humanos voando pelos ares para escapar da morte causada pelo fogo, a escolha de morrer no impacto com o solo. Certamente estamos esquecendo de algumas imagens dos ataques feitas aleatoriamente por câmeras escondidas (sem contar com as inesquecíveis e super inovadoras fotografias que Zapruder conseguiu tirar de John Kennedy sendo assassinado, em 1963); mas no caso das Torres Gêmeas estamos falando de filmagem (amadora) transferidas intencionalmente e de forma imediata para os canais de televisão. Assim, permitiram que o mundo inteiro as assistissem ao vivo a um dos massacres mais espetaculares e conhecidos do nosso tempo.
Muitos fatores contribuíram para tornar a carnificina em espetáculo (e aqui não vamos recordá-los, porque muito se tem escrito sobre isso), mas pela primeira vez foi organizado o espetáculo de um evento terrorista maciço para fins comerciais (massa) e com abrangência mundial (mais massa: lembre-se da palavra "globalização", tão em voga na época, hoje quase obsoleta como a memória das Torres Gêmeas!). Não estou bem certo, mas acho que foi também a primeira vez que um grande evento terrorista foi noticiado usando a tecnologia por satélite.
Em terceiro lugar, porque é a primeira aparição em que vimos terroristas kamikazes de forma organizada e em grupo. Atenção: Não estamos dizendo apenas "kamikazes" - cuja história do século XX tem exemplos frequentes e abundantes - mas "kamikazes de forma organizada", aliás, organizadíssima: um grupo formado por 19 pessoas dispostas a morrer, todos com bom nível educacional ou acadêmico, todos se prepararam durante anos de sacrifício (alguns eram pilotos patenteados), todos incluídos na sociedade de consumo de número um - os Estados Unidos que poderiam os ter dissuadidos dessa ação coletiva. O atentado às Torres Gêmeas não foi produto do desespero individual e da miséria, mas o resultado de um plano coletivo de autosacrifício, meticulosamente planejado e muito aguardado por eles.
Em quarto lugar, porque a motivação religiosa estava na base de tudo: a preparação, a determinação de se sacrificar, a falta de compaixão para com as vítimas, todos, homens e mulheres inocentes na sua maioria de trabalhadores, alguns deles muçulmanos. O terrorismo organizado que tínhamos conhecido no passado era o da propaganda, os "bandidos trágicos", os anarquistas de Ravachol ou Bresci, mas também os pilotos kamikazes japoneses e as bombas argelinas. Em suma, estávamos habituados a uma rede terrorista de desespero humano e projeto político: em setembro de 2001, a religião (desesperada e fanática como você quiser, mas sempre baseada na crença de que Deus iria aceitar seus mártires em vida após a morte) apareceu como estrutura ideológica combinada aos planos de grupos terroristas, que visam atingir as massas de civis indiferentemente. Este aspecto religioso (também chamado fundamentalismo) é aquele que agora mais vem crescendo, como mostram as crônicas diárias destes últimos anos, dos últimos meses e dos últimos dias.
Quinto, porque o ataque não foi destinado para abater um inimigo individual, não visava enfraquecer o inimigo estrategicamente, nem taticamente (podemos crer realmente que os terroristas que destruíram as Torres Gêmeas, nos Estados Unidos provocaram um colapso econômico ou militar?). Com esse ataque queriam atrair a atenção do mundo, enviando uma mensagem para milhares de potenciais seguidores, porque eles também entraram na lista dos suicidas de Alá; queriam dar uma forma espetacular a sua estrutura de filiação - particularmente à ala do jihadismo, aquele setor particular do mundo muçulmano: intento certamente realizado, talvez o único verdadeiramente realizado. Um triunfo do terrorismo da sociedade do espetáculo de grandes proporções.
E ainda se ignorava ou preferia fingir-se de ignorante sobre o efeito do tempo que teria dispersado no ar até mesmo as consequências da ação espetacular do terrorismo em massa. Hoje em dia, no entanto, o processo de esquecimento é claro e considera culpado o terrorismo de massa contemporânea. Por esta razão, este tipo de atentado (mártires suicidas previamente treinados e organizados, matança indiscriminada de civis "inocentes" e espetáculo das ações) tem vindo a aumentar de frequência, aparecendo quase que diariamente em todo o mundo (A escala mundial agora é a única aceitável para aqueles que planejam estes espetáculos do terror em grande escala). Precisamos realizar ataques cada vez mais duros, mais ferozes e em menos espaço de tempos para conseguir um efeito comparável àquele de Setembro de 2001.
No longo prazo, a frequência vai se tornar intensa e perderá eficácia: é o contra-efeito da grandiosa sociedade do espetáculo que enquanto atrai de maneira totalitária a atenção das pessoas, cria neles um processo de formação de hábitos. Como joga "com as palavras", podemos dizer que é um processo contínuo de "conduta tendenciosa do espetáculo do terror em grande escala", por causa dos processos de saturação visuais e de dependência psicológica. Além disso, o terrorismo não pode ir além de um certo grau de frequência e o cidadão médio a longo prazo, se acostumará com isso: afinal ele já não vive com a poluição, com alimentos cancerígenos, guerras e o comércio crescente de todas as manifestações espirituais?
A sociedade do espetáculo e do terrorismo já chegou a se fundir. Jogando mais uma vez com as palavras, podemos dizer que nos países atrasados (em alguns onde o fanatismo religioso é muito forte) a sociedade do espetáculo tem experimentado um processo de "revolução permanente", uma espécie de desenvolvimento desigual e combinado, passando de meros instrumentos de massa (mídia moderna) voltados para o espetáculo mundial do terrorismo, que o emprego - totalitário, mas temporário - dos mais modernos meios de comunicação. Isso nos permite algumas reflexões acerca da teoria da sociedade espetacular de massa transformada totalmente em terrorista, embora com intervalos de tempo muito curtos.
Ao reler o início da citação do capítulo de A Sociedade do Espetáculo, de Debord e ao substituir a palavra "terrorismo, terrorista" para a palavra "show, espetáculo". Na verdade, é possível verificar que em todo o livro há um discurso que se processa de forma igual, de acordo com a precisa lógica de fundo, onde a sociedade do espetáculo se modificará por um curto espaço de tempo e não sabemos quanto irá durar a filiação com o terrorismo: o terrorismo espetáculo de massa é a forma suprema do espetáculo. Ou seja, a forma suprema de alienação da sociedade capitalista para todos aqueles que, incapaz de encontrar razões na vida real, na irrealidade quotidiana da sociedade a imagem (o "virtual", como você diz hoje em dia), acredita que pode quebrar o domínio do espetáculo elevando-a a sua máxima potência.
Nada é mais espetacular do que o ato terrorista, dito de outra maneira, o terrorismo é uma das maiores formas de entretenimento e não poderia deixar de ser. É objetivamente, pela forma em que ocorre e se manifesta e pela maneira que a mídia se apropria. E é subjetivamente, pelas expectativas de exagero de publicidade (propaganda) presentes no próprio terrorista.
Veja como Umberto Eco atribuía essas expectativas ao homem considerado o maior terrorista dos últimos tempos, Osama bin Laden (atualmente esquecido pela ira que aflora dos modernos kamikazes de Alá):
Qual foi o propósito de Bin Laden em abater as duas torres? Criar "o maior espetáculo da Terra", ele nunca sequer imaginou um filme tão catastrófico; onde o próprio símbolo do poder ocidental foi derrubado por ele, coisa que ninguém poderia crer que fosse possível violar esse grande santuário símbolo do poder. Ele não estava fazendo uma guerra, em que conta o número de inimigos eliminados, estava apenas lançando uma mensagem terrorista e o que importava era a imagem1.
O fato é que agora a humanidade vive o espetáculo em uma dimensão planetária, no verdadeiro sentido do termo: a TV por satélite e da velocidade da circulação na Web preenchendo, em tempo real, os espaços de comunicação em todas as partes do globo. Ao fazê-lo nesta dimensão planetária, o processo de espetacularização deve ganhar conotações sociais em grande escala com o novo tamanho dos processos de produção e distribuição. Bem fez Debord, nos anos 1960, para identificar como era constituída a essência real do espetáculo agora e sempre. Hoje não haveria dificuldade para atualizar o seu trabalho, elevando-o para a escala onde se coloca normalmente nos centros de decisões fundamentais no processo de produção e reprodução do capital, ou seja, na escala supranacional, ou, dependendo da indústria, multinacional.
Bem, esta é a escala em que há o processo de produção e reprodução do espetáculo social e, em seguida, do terrorismo. Não é que o terrorismo irá se submeter ao contexto da globalização - ou seja, o estabelecimento de uma continuidade, se não uma verdadeira integração entre o processo de produção e o processo de comunicação em escala global -, mas é o próprio terrorismo que promove o estabelecimento deste quadro, fazendo com que o espetáculo seja o máximo possível.
Nas palavras de Eric Hobsbawm, em entrevista ao l'Humanité:
Vivemos em um mundo globalizado, onde o tempo e o espaço são praticamente abolidos, um mundo com fluxos livres, de modo a fazer eventos muito mais fáceis como o americano2.
Ou, para citar a franqueza de Baudrillard:
A condenação moral, a união sagrada contra o terrorismo, deve ser proporcional ao júbilo prodigioso que vem destruir a superpotência mundial, melhor ainda, vê-lo como autodestruição, o suicídio igual a beleza. Por que ela está com o seu poder insuportável, por fomentar a violência infundido em todas as partes do mundo, e por isso também que a imaginação do terrorismo (inconscientemente) que nos habita3.
Estas palavras nos levam a uma dimensão espetacular, maior do que o do próprio terrorismo, é a dimensão do desejo, onde tudo é possível. Mas esta dimensão não pode ser totalmente irreal, totalmente separada da visão de uma nova legislação societária superior.
Bem, nesta dimensão, a distinção entre legal e ilegal não tem razão de existir e, portanto, o homem da rua, além do terrorista em potencial, é livre para sonhar que, na era da globalização, podemos finalmente apertar o botão decisivo: o que vai explodir todas as torres do sistema capitalista, a partir de dentro, sem que outras vidas tenham que pagar os custos.
Ao despertar, você vai encontrar um planeta um pouco "pior do que tínhamos imaginado e os detentores do poder sistêmico um pouco 'mais fortes como os tinha deixado antes de cometer a ação terrorista ou sonhar com ela".
[tradução do italiano de Graziela Naclério Forte e revisão da tradução de Anna Bonizzi]
O artigo de Massari está incluído no «Dossiê: imigração e xenofobia» (organizado por Luiz Bernardo Pericás), págs. 27 a 33, na Revista Margem Esquerda nº 26/2016 publicada em São Paulo, Brasil.
1 Umberto Eco, "Gli alleati nolenti di Bin Laden" [Os aliados relutantes de Bin Laden], l'Espresso, 1º nov. 2001. Aqui em tradução livre.
2 Eric Hobsbawm, entrevista ao l'Humanité, 28 set. 2001.
3 Jean Baudrillard, Lo spirito del terrorismo (Milão, Cortina, 2002) [ed. port.: O espírito do terrorismo, Porto, Campo das Letras, 2007]. Aqui em tradução livre.
Nella diffusione e/o ripubblicazione di questo articolo si prega di citare la fonte: www.utopiarossa.blogspot.com