Héctor Germán Oesterheld e exemplares de seu Hora Cero |
Por alguns minutos lhe foi permitido ficar sem o capuz que cobrira sua cabeça, pouco tempo antes. Só então percebeu que estava na companhia de vários homens, tão machucados quanto ele. Era noite de Natal. Cumprimentou os prisioneiros, um a um. E ainda cantou “Fiesta”, de Joan Manuel Serrat. Depois disso, nunca mais seria visto.
As garotas nasceram todas nos anos cinquenta: Estela Inés, Diana Irene, Beatriz Marta e Marina. Suas filhas, quatro meninas lindas, sorridentes, amorosas. As fotos não mentem: aquele era um lar feliz.
Os militares argentinos não perdoavam quem levantava a voz contra a ditadura. Em 1977, o general Ibérico Saint Jean, então governador da Província de Buenos Aires, diria:
“Primero mataremos a todos los subversivos; luego mataremos a sus colaboradores; después, a sus simpatizantes; enseguida, a aquellos que permanecen indiferentes y, finalmente, mataremos a los tímidos”.
Inspirados pelas técnicas de tortura usadas pelos franceses na Argélia, pela Escola das Américas e até mesmo pelo que fazia o exército brasileiro nos anos de chumbo, eles não poupariam quem entrasse em sua frente. Em torno de trinta mil pessoas seriam eliminadas…
Beatriz foi a primeira a desaparecer, em meados de 1976. Tinha apenas 19 anos. A única que teve o corpo recuperado… Em seguida, Diana, grávida de quatro meses (e mãe de um menino, Fernando), sequestrada, junto com o parceiro, Raúl, em San Miguel de Tucumán. Marina, também gestante, seria a próxima, em novembro daquele ano. E, finalmente, Estela. Casada, tinha um filho de três anos de idade. Foi levada por agentes do Estado no final de 1977. Todas, militantes dos montoneros.
El viejo. Assim o chamavam na prisão. Havia sido sequestrado em 27 de abril de 1977. Os problemas na pele eram visíveis: perebas e espinhas surgiam no rosto e na cabeça. Estava estraçalhado, arrebentado pela ação dos verdugos. Suas costas doíam: dormia no duro piso de madeira. Antes, gostava de jogar tênis, assistir a jogos de futebol e fazer longas caminhadas, solitário. Agora, só andava a passos curtos, dentro de sua cela apertada. Arrastava-se. Mas o pior de tudo não foi a tortura. Foi quando seus captores mostraram fotos de suas filhas executadas. Sua vida, naquele momento, também havia acabado.
Ele estivera em diferentes centros de detenção: Campo de Mayo, Vesubio e Sheraton. E sofreu as amarguras e humilhações do cárcere. Isso foi naquela época, final da década de setenta. Agora, ele é o número 7.546 da lista da Comissão Nacional dos Desaparecidos. Acredita-se que tenha dado seu último suspiro em 1978, em Mercedes. Até hoje seu corpo não foi encontrado.
Héctor Germán Oesterheld foi um dos maiores nomes das HQs argentinas. Para não falar da literatura de ficção científica. E mesmo da própria “literatura” de seu país. Nascido em 1919, em Buenos Aires, filho de pai judeu alemão e de mãe basca, quando criança gostava de sonhar com as aventuras de Salgari, Verne, Melville, Conrad, Defoe e Stevenson. “Sempre fui fascinado pela história de Robinson Crusoé. Ganhei o livro quando era muito pequeno, e o devo ter lido mais de vinte vezes”, diria ele.
Geólogo da YPF em Comodoro Rivadavia na juventude, logo abandonaria a profissão para se tornar escritor e roteirista de comic books. Publicou seu primeiro conto para crianças, “Truilla y Miltar”, aos 23 anos, no diário La Prensa. E voltaria a morar na capital portenha. Ele se especializaria numa literatura folhetinesca, daquelas vendidas em quiosques e bancas de jornais, narrativas de aventuras, recheadas de temas bélicos, westerns e science fiction (chegou a escrever mais de 150 histórias).
Oesterheld passaria por diferentes editoras, como Abril, Codex, Columba e Record, fundando, em 1956, a Frontera, com seu irmão Jorge. E colaboraria com várias revistas: Más Allá, Cinemisterio, Misterix, Fantasía, El Tony, Skorpio, Zig Zag (do Chile), Gente e o diário montonero Noticias, além de Hora Cero e Frontera (estas duas, idealizadas por ele).
Casado com a companheira inseparável, Elsa Sánchez, criou alguns dos personagens mais emblemáticos dos quadrinhos rioplatenses, como o “Sargento Kirk” (uma espécie de alter ego de Martín Fierro, mas situado no Velho Oeste), “Ticonderoga” e o correspondente de guerra “Ernie Pike” (todos com o traço do genial desenhista italiano Hugo Pratt); “Bull Rocket” (pelas mãos de Paul Campani); o boxeador “Índio Suárez” (através da pena de Carlos Freixas); “Sherlock Time” (em parceria com Alberto Breccia); assim como “Rolo, o marciano adotivo” e o icônico “Eternauta”, ambos transportados para as tirinhas pelo lendário ilustrador Francisco Solano López. Os faroestes teriam destaque em seu catálogo, títulos como Randall, Verdugo Ranch, Hueso clavado, Leonero Brent, Tom de la pradera, Doc Carson, Watami e Loco Sexton.
Ainda assim, o Eternauta, sem dúvida, foi sua maior obra, considerado o “livro sagrado” e o “grande clássico” dos gibis argentinos. A história, protagonizada por Juan Salvo, começou a ser publicada em 1957 e teria uma segunda série, mais politizada e crítica, nos anos setenta. Em 1969 apareceria uma nova versão na revista Gente, em estilo ousado e vanguardista, desenhada por Breccia. Os editores não gostam, encurtam a narrativa, param de editar o trabalho. Em 1976, vem a continuação da “aventura”, uma “parte dois”, desta vez, na revista Skorpio, com o traço do amigo Solano López. Parecia uma provocação. As referências políticas e insinuações contra a ditadura eram evidentes. Ele diria: “O verdadeiro herói de O Eternauta é um herói coletivo, um grupo humano… o único herói válido é o herói ‘em grupo’, nunca o herói individual, o herói solitário”. Oesterheld terminaria o roteiro na clandestinidade.
A situação de HGO se complicava. Vale lembrar que, naquele mesmo ano, o guionista já estava envolvido com os montoneros, juntamente com suas filhas (seria chefe de imprensa da organização). Alguns anos antes de ser apreendido em La Plata, publicaria outros trabalhos emblemáticos, talvez os mais polêmicos. Em 1968, poucos meses após o assassinato de Guevara em La Higuera, Bolívia (ou no começo de 1969, segundo alguns autores), HGO preparou La vida del Che, uma biografia do guerrilheiro (no Brasil, o livro só seria publicado em 2008, com o título Che: os últimos dias de um herói, em belíssima edição lançada pela Conrad Editora). A arte ficou a cargo do colega Alberto Breccia e seu filho Enrique (aparentemente os trechos mais ousados e esteticamente interessantes foram feitos pelo jovem, então com 22 anos). A obra teve um êxito imediato, se esgotando rapidamente.
O Che era umas das principais referências da esquerda latino-americana. Sua trajetória política e ideário eram recorrentemente discutidos pelos militantes do continente. Guevara, por certo, inspirava as novas gerações. Também entusiasmou Oesterheld. Certa vez o roteirista disse: “Se me perguntassem qual é o melhor escritor argentino, para mim é o Che. É um dos intelectuais que mais defendo. É o sujeito mais lido na Argentina e o autor mais tradicional. O mais comentado e o mais estudado”. Mais tarde, o livro foi proibido de ser editado e vendido no país.
Entre 1973 e 1974, seria publicada em El Descamisado, órgão montonero, a série América Latina: 450 años de guerra, desenhado por Leopoldo Durañona, um ataque contundente de HGO ao imperialismo. Não seria perdoado.
Nunca é tarde para se conhecer a obra de Oesterheld, que infelizmente ainda é pouco divulgada no Brasil. Por isso, a sugestão é procurar os trabalhos deste grande mestre. E se envolver com suas histórias, polêmicas, provocadoras e sempre atuais.
Poster de Felix Saborido publicado no número 5 da Revista Feriado Nacional em 27 de outubro de 1983 |
Publicado em www.blogdaboitempo.com.br.
* Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. É autor, pela Boitempo, de Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010) e do lançamento ficcional Cansaço, a longa estação (2012). Também publicou Che Guevara: a luta revolucionária na Bolívia (Xamã, 1997), Um andarilho das Américas (Elevação, 2000), Che Guevara and the Economic Debate in Cuba (Atropos, 2009) e Mystery Train (Brasiliense, 2007). Seu livro mais recente é Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, organizado em conjunto com Lincoln Secco. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
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