Antes mesmo de ser lançado oficialmente, o filme Che, de Steven Soderbergh, já causava polêmica. Dividido em duas partes, El argentino e El guerrillero, a obra completa, com quatro horas e meia de duração e que custou em torno de US$ 60 milhões, conseguiu provocar um intenso debate, não só sobre a forma como era retratado um dos principais líderes da revolução cubana como também em relação à própria qualidade artística da película. Desde o grande público norte-americano, especialmente o da Flórida, até os críticos cubanos, pôde-se perceber em alguns momentos um tom ácido nos comentários (certamente com diferentes matizes e motivações) sobre a transposição mais recente para as telas da vida do comandante Che Guevara.
Estrelada por Benicio del Toro, esta superprodução, que contou com 360 figurantes, foi apresentada com grande expectativa no 61º Festival de Cannes e na Mostra Internacional do 30º Festival del Nuevo Cine de Cuba, mas recebeu, de forma geral, avaliações moderadas. O fato é que El argentino (a fita que discutiremos aqui) é bastante problemática em diversos aspectos. Soderbergh tentou se escorar em especialistas para assessorá-lo, como o jornalista Jon Lee Anderson e o Centro de Estudos Che Guevara em Havana, para garantir o máximo de fidelidade na condução da narrativa, o que é, sem dúvida, um mérito, mas mesmo assim, não conseguiu criar uma obra transcendente, “definitiva”, sobre o “guerrilheiro heroico”.
Os personagens não têm o carisma nem a profundidade humana necessários para aproximar o público de suas histórias. Del Toro (que nasceu em 1967, mesmo ano do assassinato de Guevara) é competente ao interpretar o Che, certamente, mas lhe falta o brilho natural do argentino e as possíveis dúvidas e reflexões existenciais de um homem que abandona por completo sua vida pregressa, seu passado, para se reconstruir completamente e se engajar em um novo caminho, sem volta. A solidão, as angústias, a distância da esposa e da filha, sua família na Argentina, seus amigos, tudo isso não é mostrado com a devida clareza ou dramaticidade no filme.
Os demais guerrilheiros, por seu lado, se parecem mais como autômatos do que com seres humanos reais. O diretor, neste caso, não desenvolve ou aprofunda outros personagens daquela epopeia.
Rodrigo Santoro (que interpreta Raúl Castro), como em diferentes oportunidades em que atuou em filmes estrangeiros, tem falas curtas, telegráficas. Ele troca poucas palavras e apertos de mão com outros combatentes, não indo muito além disso; ou seja, não é capaz de mostrar, em sua aparição relâmpago, a complexidade de uma das mais importantes figuras da revolução.
O mesmo vale dizer para Demian Bichir, que interpreta um Fidel Castro com alguns maneirismos similares, mas que fica por aí. Cabe destacar a forma como foram apresentados o comandante Camilo Cienfuegos e o chefe do “pelotão suicida”, o capitão Roberto Rodríguez Fernández (Vaquerito), ainda que estes também não tenham recebido o tratamento devido, em momentos sendo retratados quase como caricaturas. Em suma, homens como Fidel, Camilo e Raúl Castro, assim como aqueles não tão conhecidos fora de Cuba, como Juan Almeida, Victor Bordón e Ramiro Valdés, por certo, mereciam maior exposição.
O diretor também poderia ter utilizado outros recursos: mais flashbacks e imagens reais, de época, entre as cenas dramatizadas, ficcionalizadas, quem sabe, dessem maior profundidade e sofisticação ao filme, e explicassem melhor (com técnicas documentais de facto, unidas a bons desempenhos dramáticos e montagem inovadora) a história que Soderbergh queria apresentar ao grande público. O primeiro encontro entre Che e Fidel, por exemplo, é evocado casualmente, mas parece pouco convincente para um momento que foi central na vida dos dois personagens. Uma ênfase maior deveria ter sido dada à eloquência e à retórica do líder cubano, assim como à importância e transcendência daquela conversa.
Na prática, as tentativas de retratar o Che nas telas, ao longo das décadas, não foram bem sucedidas. E a imagem que Hollywood tentou passar do revolucionário, nem sempre a melhor. É só lembrar de Che! (1969), dirigido por Richard Fleischer, com roteiro de Michael Wilson e Sy Bartlett, e estrelado por Omar Sharif e Jack Palance, ou do relativamente recente A cidade perdida, do ator e diretor Andy Garcia, de 2005. No primeiro caso, um filme considerado por Sharif como “fascista”, inteiramente manipulado pela CIA (o ator chegou a declarar que teria se arrependido de ter participado dele). Já o segundo, uma fita baseada no roteiro de Cabrera Infante (com as participações do próprio Garcia, além de Tomas Milian, Dustin Hoffman e Bill Murray), realizada claramente com o objetivo de agradar ao público cubano-americano de Miami e aos dissidentes e exilados da ilha.
Soderbergh, neste sentido, pelo menos exibe um Guevara sem os ranços preconceituosos anticastristas da indústria cinematográfica hollywoodiana. Tenta, na medida do possível, ser fiel ao personagem e à sua história, sem criar momentos artificiosos ou espetaculares. Mas falta emoção. O fato de o filme ser falado em espanhol e de ter em seu elenco uma grande diversidade de atores latino-americanos, por outro lado, é um mérito que merece ser destacado.
Alguns pontos são de menor importância. Enquanto Guevara era um homem que media em torno de 1,73m e estava bastante magro e desgastado (obviamente pelas duras condições da guerrilha e pela asma), Del Toro, com quase 1,90m de altura, aparece como um Che forte e bem alimentado (ainda que apresente a dificuldade de respiração que costumeiramente afligia Guevara). O mexicano Gael García Bernal, que protagonizou Os diários de motocicleta, de Walter Salles, certamente tinha características físicas mais próximas às do argentino…
Se o Che era um revolucionário, o mesmo não pode ser dito do filme. Esta é uma obra convencional em todos os sentidos. O roteirista Peter Buchman se inspirou, em grande medida, no livro Passagens da guerra revolucionária, do próprio Guevara, publicado em 1963, para escrever seu roteiro. Aquela obra era composta de textos curtos, “episódios” da luta protagonizada pelo Exército Rebelde. São crônicas que mostram, a partir do ponto de vista do autor, os acontecimentos da guerrilha liderada pelo Movimento 26 de Julho. Aquele é um livro que funciona, que agrada ao leitor.
Já a transposição da obra para as telas deveria ter sido distinta. Qualquer filme deve ser um “conjunto”, algo “inteiro”. Afinal, o cinema tem linguagem e dinâmica próprias. Mas o que se vê, na prática, é uma história “recortada”, quase uma “colcha de retalhos”, com cenas que muitas vezes não encaixam, e com um ritmo lento, arrastado, sem a grandeza que o personagem merece. Alguns episódios do livro, muito interessantes e polêmicos, como o do “cachorrinho assassinado”, sequer são mencionados. E indivíduos que deveriam estar presentes, de forma explícita, como os jornalistas Herbert Matthews e Jorge Ricardo Masetti, perdem sua importância e são basicamente deixados de lado.
O filme é também entremeado por trechos em preto e branco de Guevara em Nova Iorque, seja se entrevistando com a jornalista Laura Bergquist ou em seu discurso na sede das Nações Unidas. Para quem conhece bem sua história, aquelas imagens fazem sentido, ao evocar a atuação do Che encabeçando a delegação cubana na ONU em 1964. Mas para os que não estão familiarizados com a vida do guerrilheiro de origem argentina, as cenas não ajudam. Na verdade, confundem. Afinal, ninguém explica para o espectador desavisado qual foi o papel do comandante no governo de Cuba após o triunfo da revolução a partir de 1º de janeiro de 1959, sua atuação como chefe do Departamento de Industrialização do INRA, como presidente do Banco Nacional e como ministro das Indústrias. Assim, o Che num momento está lutando na Sierra Maestra e em outro, discursando na Assembleia Geral. Mas o que aconteceu entre um evento e outro, fica de fora. Não era a intenção de Soderbergh narrar os primeiros anos do governo revolucionário, certamente, mas sim, enfocar exclusivamente o período da luta guerrilheira. De qualquer forma, faltaria apresentar mais elementos políticos para o espectador.
Talvez a maior ausência em Che seja, portanto, da própria política, de forma clara e aprofundada. O público sabe que aquela é uma luta revolucionária contra a ditadura de Fulgencio Batista, mas não conhece os detalhes de seu governo, a organização do M-26-7 nos centros urbanos, os partidos, o movimento estudantil, os setores “burgueses” e outros grupos guerrilheiros com qualquer detalhamento ou discussão mais séria ao longo da história. E isso seria algo fundamental.
A fotografia de Peter Andrews e a montagem de Pablo Zumárraga são competentes, corretas, mas não passam disso. Não há nada de inovador, de diferente, de criativo, de original nestes aspectos da fita, assim como na trilha sonora de Alberto Iglesias. Certamente que há respeito e dignidade no Che de Soderbergh, e bastante fidelidade nos cenários e no figurino, mas isso não é o suficiente para tornar seu filme bom.
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